Arquivo do Autor

MixLit 62: Ainda hoje

Com um semblante consternado1, ela se inclinou, deu-me um beijo e murmurou: “Você está com aquele seu olhar de órfão novamente.”2

“Não”3, eu disse, também pesando cuidadosamente.4

Acendi uma vela aromática que repousei em cima do meu livro preferido, O caminho de Bodisatva, fiquei olhando pra chama quentinha perto do meu rosto, e chorei de um modo tranquilo.5 Andei até um canto da casa, espreitei…6

Se não fosse aquela briga, se por causa dela meu pai não tivesse mudado como que por encanto, e da noite para o dia tivesse deixado de falar comigo…7 Faz muitos anos isso.8

A questão era: o que eu faria a respeito?9

Tenho algumas ideias, mas não sei se terei força suficiente para realizá-las.10 Não planejei isso, foi uma situação em que a vida me colocou.11 Espero um dia poder sair.12

E então foi isso (escrevi essa linha só para criar um espaço, deixando a fonte em branco)

1 Josué MONTELLO. O camarote vazio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p.34.

2 Alain DE BOTTON. Ensaios de amor. Tradução de Fábio Fernandes. Rio de Janeiro/Rio Grande do Sul: Rocco/L&PM, 2001, p.107.

3 Machado de ASSIS. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Garnier, 1998, p.207.

4 Péter ESTERHÁZY. Os verbos auxiliares do coração. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.19.

5 Dodô AZEVEDO. Pessoas do século passado. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p.73.

6 Witold GOMBROWICZ. Cosmos. Tradução de Tomasz Barcinski e Carlos Alexandre Sá. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.70.

7 Michel LAUB. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.50.

8 Marcel PROUST. No caminho de Swann – Em busca do tempo perdido. Tradução de Mário Quintana. São Paulo: Abril, 1979, p.27.

9 Agatha CHRISTIE. Morte na Mesopotâmia. Tradução de Henrique Guerra. Rio Grande do Sul: L&PM, 2011, p.161.

10 Mario BELLATIN. Salão de beleza. Tradução de Maria Alzira Brum Lemos. Rio Grande do Sul: Leitura XXI, 2007, p.68.

11 Daniel RUSSEL RIBAS. Conto “Carta”, publicado no blog Revista Lama, em 11 de abril de 2012, sétima linha.

12 Clarice LISPECTOR, em carta para a irmã Tânia, de 1948, em: Clarice, livro de Benjamin Moser. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.275.

MixLit 61: Um jogo

Ele estava no quarto, empurrando roupas para dentro de uma mala, quando ela chegou à porta.

– Estou contente por você estar indo embora, estou contente por você estar indo embora! – disse ela – Está ouvindo?1

– Você estava muito irritada agora há pouco.

– Fui apanhada de surpresa.

– Peço desculpas por isso.2 Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas e ancas das mulheres.3 É muito difícil ser inteligente neste corpo.4 Não é você que tem de suportar isso.5

“Por que ele está me dizendo isso?”, pensou Liôlia.6  Sentiu um duro apertão na traqueia, e7 teve um estremecimento íntimo.8 A tentação de9 beijos cheios de paixão, e tais como nunca recebera, fizeram-na de repente esquecer que talvez ele amasse outra mulher. Dali a pouco já não o considerava culpado.10 Estava jogando algum jogo, no qual precisava mover-se rapidamente11. Curvou-se em cima dele para sussurrar umas últimas palavras em seu ouvido:12

– Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar calado; ao contrário – rua!13

Ele não respondeu. Foi ela quem se afastou, somente para voltar mais meiga e mais ousada. Tornou-se tão afoita, tão desesperada, que o deixou imaginando se algum dia conhecera a verdadeira natureza de sua mulher.14

____________________

1 Raymond CARVER. Iniciantes. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.234.

2 Woody ALLEN. Adultérios. Tradução de Cássia Zanon. Rio Grande do Sul: L&PM, 2011, p.63.

3 Murilo MENDES. Poemas e Bumba-meu-Poeta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p.61.

4 Gonçalo M. TAVARES. O homem ou é tonto ou é mulher. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005, p.31.

5 William FAULKNER. O som e a fúria.  Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, pg.264.

6 Anton TCHECKHOV. Um negócio fracassado e outros contos de humor. Tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Rio Grande do Sul: L&PM, 2010, p.29.

7 Domingos AMARAL. Quando Lisboa tremeu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011, p.18.

8 José de ALENCAR. Lucíola. São Paulo: Ática, 1998, p.119.

9 Jorge Luis BORGES. Discussão. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.42.

10 STENDHAL. O vermelho e o negro. Tradução de Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify. 2008, p.85.

11 Patrick SÜSKIND. O perfume – história de um assassino. Tradução de Flávio R- Kothe. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.178.

12 J.M. COETZEE. Vida e época de Michael K. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.206.

13 Aluísio AZEVEDO. O cortiço. São Paulo: Ática, 1992, p.95.

14 Nathan ENGLANDER. Para alívio dos impulsos insuportáveis. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p.205.

Imagem: Bruce French, “Darkness is the absence of light”.


MixLit 60: Os vivos

Na manhã seguinte, muito escura, batendo o vento e a chuva na casa,1 colocaram pílulas sobre a minha língua2. Penetrei num plano de existência onde3 viver a rotina é a melhor coisa do mundo. O final deste dia será igual ao final do dia de ontem e assim por diante4.

Passou um ano. Outro ano. Outro ano. Outro5.

Eu já não estava muito em meus eixos, recordo que6 passou a ser um esforço não fechar os olhos7 envelhecidos e afetados pela catarata8 contra o brilho do sol9.  Não me escutam, não me veem, não me entendem10. Tudo que faço é apenas vagar nesse espaço vazio. Já estou quase morto;11 quem vai sentir falta?12 Um conselho de amigo:13 Vou esperar por você aqui. Tenha cuidado14.


1 Macedonio FERNÁNDEZ. Museu do romance da Eterna. Tradução de Gênese Andrade. São Paulo: Cosac Naify, p.131.

2 Hafid AGGOUNE. Os amanhãs. Tradução de Maria Angela Villela. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p.77.

3 Vladimir NABOKOV. Lolita. Tradução de Jorio Dauster. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003, p.60.

4 Claudia NINA. Esquecer-te de mim. São Paulo: Babel, 2011, p.40.

5 Jonathan SAFRAN FOER. Extremamente alto e incrivelmente perto. Tradução de Daniel Galera. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p.196.

6 Juan RULFO. Pedro Páramo. Tradução de Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Editora Record, Edições BestBolso, 2009, p.70.

7 J.M. COETZEE. Vida e época de Michael K. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.83.

8 Imre KÉRTESZ. O fiasco. Tradução de Ildikó Suto. Editora Planeta. São Paulo, 2004, p.364.

9 J.M. COETZEE. Idem.

10 Nikolai GOGOL. Diário de um louco (precedido de O Nariz). Tradução de Roberto Gomes. Rio Grande do Sul: L&PM Pocket, 2007, pg.95.

11 Rafael SPERLING. Festa na usina nuclear. Rio de Janeiro: Oito e meio, 2011, p.34.

12 Sérgio VAZ. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011, p.105.

13 Millôr FERNANDES. Trinta anos de mim mesmo. São Paulo: Círculo do Livro, 1974, p.166.

14 Orhan PAMUK. Neve. Tradução de Luciano Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.419.

MixLit 59: A criança está para chegar

Tomando nosso café com torradas1, Maria olhava-me e ria2 sugerindo nomes (para meninos)3. Eu me levantei, pedi desculpas bestamente e4 saí à rua5. Durante a caminhada6, senti que um medo irracional e perturbador começou a me percorrer7.

Um filho?8 Meu filho9. O filho é a imagem mais próxima da ideia de destino, daquilo de que você não escapa. Ou daquilo de que você não pode escapar? Por quê? Por que eu não posso tomar outro rumo?10 Não conquistei nada11. Um derrotado na vida12. Quem não pode cumprir os deveres de pai não tem direito de tornar-se pai13.

– E se eu for um homem mau? – falei, e claro, me senti imediatamente desastrado14 – Não, não pode ser assim – disse15 – O que é que me tortura?16

Andei devagar para ganhar tempo17. Maria18 me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão19 e caminhou descalça até onde eu estava20. Tinha as faces vermelhas e molhadas de lágrimas21. Passou a mão na minha cabeça22 sem olhar para mim23 e sussurrou: “Na verdade, estou com um pouco de medo.”24

Cheguei a abrir a boca, e o que eu ia dizer envelheceu de imediato25. Então nos beijamos26.

Quando senti que a porta às minhas costas se fechava, não soube se começava a rir ou se chorava. Respirei aliviado27. Eu não queria mais lutar28. O que tem que ser será bom29.


1 Mario VARGAS LLOSA. Travessuras da menina má. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p.185.

2 e 18 Albert CAMUS. Estado de sítio/O estrangeiro. Tradução de Antonio Quadros. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.211.

3 Lionel SHRIVER. Precisamos falar sobre Kevin. Tradução de Beth Viera e Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007, p.70.

4 Bernardo AJZENBERG. Olhos secos. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.29.

5 e 12 Enrique VILA-MATAS. Doutor Pasavento. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p.189.

6 Herman HESSE. Sidarta. Tradução de Herbert Caro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973, p.42.

7 Raymond CARVER. Iniciantes. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.83.

8 e 23 Milton HATOUM. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das letras (de bolso), 2010, p.45 e p.13.

9 e 13 Jean-Jacques ROUSSEAU. Emílio ou Da educação. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2004, p.297 e p.27.

10 Cristovão TEZZA. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2010, p.41.

11 e 26 Roberto BOLAÑO. Estrela distante. Tradução de Bernardo Ajzenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.142 e p.139.

14 João Gilberto NOLL. Harmada. São Paulo: Francis, 2003, p.96.

15 Leon TOLSTÓI. A morte de Ivan Ilitch. Tradução de Vera Karam. Rio Grande do Sul: L&PM, 2007, p.56.

16 Fernando PESSOA. Ficções do interlúdio. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.21.

17 Witold GOMBROWICZ. Cosmos. Tradução de Tomasz Barcinski e Carlos Alexandre Sá. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.79.

 19 Raduan NASSAR. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.9.

20 Philip ROTH. Adeus Columbus. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.81.

21 Fernando SABINO. Duas novelas de amor. São Paulo: Ática, 2002, p.35.

22 Jorge AMADO. Capitães de areia. Rio de Janeiro: Record, 1996, p.54. 

23 Ian MCEWAN. Na praia. Tradução de Bernardo Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.68.

25 Adriana LUNARDI. A vendedora de fósforos. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p.80.

26 Marçal AQUINO. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.228.

28 Clarice LISPECTOR. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.88.

29 Walt WHITMAN. Folhas de relva. Tradução de Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.153.

MixLit 58: Se estou vivo, algo está morrendo

Não me venha com teorias, estou farto1. É necessário que no trato com nós próprios nos portemos com extrema sinceridade. Caso contrário2, por que romper certos silêncios e ouvir sombras capazes de ferir?3 Peço  justiça para aqueles que, com suas vidas e obras, são uma benção para a humanidade. Não coloco acima de tudo4 Nietzsche e os conceitos de vontade de potência e eterno retorno, Bergson e os conceitos de multiplicidade, atual e virtual, gênese, atualização, duração e Espinosa e os conceitos de intensidade, expressão, imanência5. A razão humana é um amálgama confuso  em que todas as opiniões e todos os costumes, qualquer que seja a sua natureza, encontram igualmente lugar6. Nos últimos meses, três ex-colegas meus se mataram7, desesperados com o fato de o mundo já não possuir os sentidos e a capacidade para acolher suas artes e ciências8. O que é que interessa às pessoas hoje em dia? Dançar, tomar banho, conversar; porém, nada de coisas sérias nem de trabalhar9. Começo a ficar rabugento10, estragado, como qualquer um pode ver11. Não me incomodo em repetir12: Não sabia que a morte podia ser vivida13.

____________________

1 Herberto HELDER. Photomaton & Vox. Lisboa: Assírio e Alvim, 1979, pg.89.

2 Ramón Gómez de LA SERNA. O médico inverossímil.  Tradução de Júlio Henriques. Lisboa: Antígona, 1998, pg.23.

3 Lu MENEZES. Onde o céu descasca. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, p.78.

4 Henry David THOREAU. Walden, ou a vida nos bosques. Tradução de Denise Bottman. Rio Grande do Sul: L&PM, 2010, pg.82.

5 Roberto MACHADO. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, pg.247.

6 Michel de MONTAIGNE. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril. Coleção Os Pensadores, 2ª edição, 1980, pg.59.

Thomas BERNHARD. O imitador de vozes. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pg.151.

8 Thomas BERNHARD. Idem.

9 Elias CANETTI. Auto de fé. Tradução de Luís de Almeida Campos. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2011, pg.30.

10 Herman MELVILLE. Moby Dick. Tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: Cosac Naify, 2010, pg.26.

11 Carlito AZEVEDO. Collapsus linguae. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001, pg.15.

12 João Gilberto NOLL. Harmada. São Paulo:Francis, 2003, pg.63.

13 Marguerite DURAS. O homem sentado no corredor/A doença da morte. Tradução de Vadim Nikitim. São Paulo: Cosac Naify, 2007, pg.78.

MixLit 57: Eu li, está me ouvindo?

Por onde enfio a cabeça para respirar, frenético de sufoco, depois dessa natação profunda de seiscentos e dezessete páginas?1 Não consigo mais aguentar2 essa precavida arte do pastoreio3, dominando-me com sua densa realidade4, mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana5. Onde está o exército? Por que não prendem essa gente?6

“O homem, pelo fato de escrever livros, transforma-se em universo (não se fala no universo de Balzac, no universo do Tchekhov, no universo de Kafka?) e o próprio de um universo é justamente ser único. A existência de um outro universo o ameaça na sua própria essência”7, você dirá, e concordarei em parte8. Se você leva duas páginas para dizer que uma pessoa percorreu um quilômetro9, a amargura te invade o coração10. Tirar seriedade do acto da escrita, aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida11. Bem, não vou me estender12, você nunca vai se encher de mim13, sei quando as pessoas não estão me acompanhando, elas reclinam a cabeça para a esquerda e surge essa ruga na testa, essa14.

1 Julio CORTÁZAR. A volta ao dia em 80 mundos – tomo II. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Civilização Brasileira/Editora Record. Rio de Janeiro. 2008, pg.44.

2 Raymond CARVER. Iniciantes. Tradução de Rubens Figueiredo. Conto: O lance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pg.42.

3 Peter SLOTERDIJK. Regras para o parque humano. Tradução de José Óscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p.52.

4 Lya LUFT.  Reunião de família. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.57.

5 Tzvetan TODOROV. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009, p.23.

6 Moacyr SCLIAR. Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. Rio Grande do Sul: L&PM, 1996, p.84.

7 Milan KUNDERA. O livro do riso e do esquecimento. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1987, p.121.

8 Flávio CARNEIRO. O leitor fingido. Rio de Janeiro: Rocco, 2010, p.15.

9 Umberto ECO. Seis passeios no bosque da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pgs.65,66.

10 Moacyr SCLIAR. Idem.

11 Gonçalo TAVARES. 1 – poemas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p.163.

12 Simone CAMPOS. Owned – um novo jogador. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. Retirado de trecho disponibilizado no site Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.

13 Dan RHODES. Timoleon Vieta volta para casa. Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p.105.

14 Simone CAMPOS. Idem.

MixLit 56: Em casa

Quando Anton acordou, o cheiro do almoço já se espalhava pela casa inteira. Farejou: tinha torta no forno!1 Levantou-se, calçou as sandálias de couro e se arrastou até a cozinha2.  Sobre a mesa jaziam os restos do café da manhã, do qual não parecia ter sido consumida muita coisa3.  O pai estava sentado 4 , o copo de vinho à mão5.

– Dê só uma olhada – ele pediu, com6 a expressão fatigada e triste de um ator que já está farto de representar7.

Depois de8 Anton9 atacar um tomate cereja que ficava continuamente deslizando do seu garfo10, o velho11 murmurou:

– Cão, cão, falta à sua palavra12. Tens de mendigar o teu pão13. Conheço um lugar melhor para fazer isso14.

Por um momento, Anton ficou indeciso15. Repuxou o canto da boca e sorriu16.

– Eu… vou dormir. – disse17.

 – Que palhaçada é esta?18 – falou19 o pai20 –  Já não há erros; você cometeu todos eles21 – e não pôde ver como Anton tinha ficado vermelho22.


1 Angela SOMMER-BODENBURG. O pequeno vampiro. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.44.

2 Bernardo AJZENBERG. Olhos secos. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.122.

3 Franz KAFKA. O veredicto/Na colônia penal. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.15.

4 Franz KAFKA. Idem.

5 Cristovão TEZZA. Um erro emocional. Rio de Janeiro: Record, 2010, p.89.

6 Orhan PAMUK. A maleta do meu pai. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.9.

7 Lygia FAGUNDES TELLES. Apenas um saxofone. Em: Liberdade até agora. Organização de Márcio Debellian e Eduardo Coelho. Rio de Janeiro: Móbile, 2011, p.149.

8 Azar NAFISI. Lendo Lolita em Teerã. Tradução de Fernando Esteves. Rio de Janeiro: Record/BestBolso, 2009, p.196.

9 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem.

10 Azar NAFISI. Idem.

11 Hermann BROCK. Pasenow ou O Romantismo. Em: Os sonâmbulos. Tradução de Wilson Hilário Borges. São Paulo: Germinal, 2003, p.105.

12 Hermann BROCK. Idem.

13 Daniel DEFOE. Robinson Crusoé. Adaptação e revisão de Terra de Sena. Rio de Janeiro: Minerva, 1954, p.14

14 Adriana LUNARDI. A vendedora de fósforos. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p.75.

15 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem, p.37.

16 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem, p.131.

17 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem, p.132.

18 Marcelino FREIRE. Vovô valério vai voar. Em: Liberdade até agora. Organização de Márcio Debellian e Eduardo Coelho. Rio de Janeiro: Móbile, 2011, p.239.

19 Marcelino FREIRE. Idem, p.232.

20 Franz KAFKA. Idem.

21 Dorothy PARKER. Meia-idade, triste idade. Em: Serrote número 7. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2011, p.205.

22 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem, p.1.

MixLit 55: Uma visita à sra. Mercado

Sentada no parapeito, cabisbaixa, imersa em pensamentos1, embriaguez2, juntamente alegre e triste3, a sra. Mercado só percebeu a nossa aproximação quando Poirot estacou diante dela e a saudou4.

— Q-q-quanto é?5

Ela ficou curiosa pela figura: terno, gravata, o cabelo penteado com capricho, mudando do cinza pro grisalho. Um coroa, mais um. Estava se especializando no antendimento à terceira idade6.

— Quanto você tem aí?7

Viuva, baixinha, feia, gordinha8, um hálito de mamute9. Só não tenho medo dela quando estamos na cama10, eu disse11, De bom não tem nada, nem o exotismo12.

— Que importa?13, me disse14 Poirot15 — Xá comigo!16

— Faça bom proveito!17

Acendi um cigarro, ele trouxe uma garrafa de cerveja, dois copos, não podia ver ninguém bebendo sozinho, “Me dá aflição!”, brindamos, sumiu atrás da mulher18.

Meu respeito por ele aumentou19.


1 Agatha CHRISTIE Morte na Mesopotâmia. Tradução de Henrique Guerra. Rio Grande do Sul: L&PM, p.168.

2 Marçal AQUINO. Eu receberia as piores noticias dos seus lindos lábios. Sã o Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.85.

3 Machado DE ASSIS O alienista. Rio Grande do Sul: L&PM, 1998, p.87.

4 Agatha CHRISTIE. Idem.

5 Atiq RAHIMI. Syngué sabour – Pedra-de-paciência. Estação Liberdade. P.110.

6 Marçal AQUINO. Idem.

7 Atiq RAHIMI. Idem, p.111.

8 Muriel BARBERY. A elegância do ouriço. Tradução de Rosa Freire D`Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.115.

9 Muriel BARBERY. Idem.

10 Péter ESTERHÁZY. Uma mulher. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.96.

11 Marçal AQUINO. Idem, p.217.

12 Péter ESTERHÁZY. Idem, p.83.

13 Machado DE ASSIS. Idem, p.25.

14 Luiz RUFFATO. Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia  das Letras, 2009, p.19.

15 Agatha CHRISTIE. Idem.

16 Luiz RUFFATO. Idem.

17 Muriel BARBERY. Idem, p.34.

 18 Luiz RUFFATO. Idem.

 19 Agatha CHRISTIE. Idem, p.171.

Imagem: pintura de Emile Nolde, “Strange couple brown ground”.

MixLit 54: Uma ida à vida

Aqui o público entra e diz: VEJAMOS A CENA.

O morto responde: Eis1 o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas2: Deus desistiu? Não resta nada para nós a não ser derramar nosso próprio sangue?3 De que estava Deus querendo nos lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido4, uma mistificação colossal5, e nem a palavra terrena6. Mas a verdade é que7 depois de dias fechados, uma manhã de bom tempo8, vacas aparando a grama, galinhas arregaladas9, brilho e sutileza da atmosfera: uma seda fresca e luminosa; este momento vazio (nenhum significado) produz uma evidência: vale a pena viver10. Mas não é lá um conselho que eu siga11. A estadia foi boa12, mas ela foi também forçosamente monótona13.

A essa altura, então, na peça bem desenvolvida (e, talvez, na vida honestamente analisada)14 estaremos livres para suspirar ou lamentar. E aí poderemos ir para casa15.

____________________

1 Valère NOVARINA. Diante da palavra. Tradução de Ângela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras. 2009, p.29.

2 René DESCARTES. “Discurso do método”, em Descartes – Vida e obra, coleção Os pensadores. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p.48.

3 Toni MORRISON. Amada. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.257.

4 Clarice LISPECTOR. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998, conto: Perdoando Deus, p.42.

5 Nelson RODRIGUES. O beijo no asfalto.Em: O teatro completo de, 4 – Tragédias cariocas II. 1961-1978. Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1990, p.143.

6 Clarice LISPECTOR. Idem, p.42.

7 Angélica FREITAS. Rilke-shake. Rio de Janeiro/São Paulo: 7Letras/Cosac Naify, 2006, p.28.

8 Roland BARTHES. A preparação do romance, vol.1. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.99.

9 Angélica FREITAS. Idem, p.20.

10 Rolanda BARTHES. Idem, p.99.

11 Bruno AZEVÊDO. Breganejo Blues – novela trezoitão. Maranhão: Pitomba, 2009, p.48.

12 Bernardo AJZENBERG. Olhos secos. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p.9.

13 Bernardo AJZENBERG. Idem.

14 David MAMET. Três usos da faca. Tradução de Paulo Reis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.77.

15 David MAMET. Idem.

MixLit 53: O sim, o não, as conclusões

Sozinho, a meio da noite, a febril luz do pequeno candeeiro a arder1, enquanto o fósforo se apagava, vi como me olhava com ternura. Depois, já na completa escuridão, senti que sua mão acariciava minha cabeça. Disse-me2 que queria transformar aqueles pobres-coitados em ferozes defensores da pátria3. O que seria dela se também se apagasse como se apagou a chama daquela luz débil?4

– De quanto vocês precisam para fazer a sua revolução? – perguntou5.

Permaneci calado, com os olhos fixos na terra aos meus pés. Eu e a terra – e ela ao lado6.

– E os seus amigos? – disse ela – Não pensa neles?7

Mais uma vez eu precisava dizer alguma coisa, mas antes que pudesse8, saiu fechando a porta sem fazer ruído9.

O vento cantava os funerais de algum desconhecido. As árvores se curvavam, gemedoras e soluçantes, Alguma coisa… possivelmente uma veneziana… rangia desesperadamente e batia contra a base da janela10. Fazer uma revolução?11 Por que tudo tem de ter resposta?12 Por mais que se lute contra a realidade13… Não sei bem o que dizer14… Como evitar a aura de conclusão de uma última sentença?15


1 valter hugo MÃE. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.167.

2 Ernesto SABATO. O túnel. Tradução de Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.64.

3 Luiz RUFFATO. O livro das impossibilidades. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.81.

4 Juan RULFO. Pedro Páramo. Tradução de Eric Nepomuceno. Editora Record. Rio de Janeiro. Edições BestBolso, p.114.

5 Juan RULFO. Idem, p.110

6 Witold GOMBROWICZ. Cosmos. Tradução de Tomasz Barcinski e Carlos Alexandre Sá. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.129.

7 Gustave FLAUBERT. Madame Bovary. Tradução de Fernanda Ferreira Graça. Linda-a-Velha, Portugal: Biblioteca Visão, 2000, p.130.

8 Witold GOMBROWICZ. Idem, p.129.

9 Juan RULFO. Idem, p.114.

10 Anton TCHEKHOV. “Então, era ela!”; em: Os mais brilhantes contos de. Tradução de Yolanda Vettori. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, sem data, p.99

11 Wolfgang HOHLBEIN, e Heike HOHLBEIN. Marchenmond II – Os filhos das terras sombrias. Tradução de Elisabeth Loibl.  Rio de Janeiro: Prestígio editoria/Ediouro, sem data, edição digital no Scribd, sem numeração de página.

12 Ernesto SABATO. Idem, p.64.

13 Ricardo DOMENECK. A cadela sem Logos. Rio de Janeiro/São Paulo: 7Letras/Cosac Naify, 2007, p.123.

14 Laura ERBER. Os dias e os corpos. São Paulo: Editora de Cultura, 2008, p.58.

15 Ricardo DOMENECK. Idem.