Archive for the ‘Machado DE ASSIS’ Category

MixLit 62: Ainda hoje

Com um semblante consternado1, ela se inclinou, deu-me um beijo e murmurou: “Você está com aquele seu olhar de órfão novamente.”2

“Não”3, eu disse, também pesando cuidadosamente.4

Acendi uma vela aromática que repousei em cima do meu livro preferido, O caminho de Bodisatva, fiquei olhando pra chama quentinha perto do meu rosto, e chorei de um modo tranquilo.5 Andei até um canto da casa, espreitei…6

Se não fosse aquela briga, se por causa dela meu pai não tivesse mudado como que por encanto, e da noite para o dia tivesse deixado de falar comigo…7 Faz muitos anos isso.8

A questão era: o que eu faria a respeito?9

Tenho algumas ideias, mas não sei se terei força suficiente para realizá-las.10 Não planejei isso, foi uma situação em que a vida me colocou.11 Espero um dia poder sair.12

E então foi isso (escrevi essa linha só para criar um espaço, deixando a fonte em branco)

1 Josué MONTELLO. O camarote vazio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p.34.

2 Alain DE BOTTON. Ensaios de amor. Tradução de Fábio Fernandes. Rio de Janeiro/Rio Grande do Sul: Rocco/L&PM, 2001, p.107.

3 Machado de ASSIS. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Garnier, 1998, p.207.

4 Péter ESTERHÁZY. Os verbos auxiliares do coração. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.19.

5 Dodô AZEVEDO. Pessoas do século passado. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p.73.

6 Witold GOMBROWICZ. Cosmos. Tradução de Tomasz Barcinski e Carlos Alexandre Sá. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.70.

7 Michel LAUB. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.50.

8 Marcel PROUST. No caminho de Swann – Em busca do tempo perdido. Tradução de Mário Quintana. São Paulo: Abril, 1979, p.27.

9 Agatha CHRISTIE. Morte na Mesopotâmia. Tradução de Henrique Guerra. Rio Grande do Sul: L&PM, 2011, p.161.

10 Mario BELLATIN. Salão de beleza. Tradução de Maria Alzira Brum Lemos. Rio Grande do Sul: Leitura XXI, 2007, p.68.

11 Daniel RUSSEL RIBAS. Conto “Carta”, publicado no blog Revista Lama, em 11 de abril de 2012, sétima linha.

12 Clarice LISPECTOR, em carta para a irmã Tânia, de 1948, em: Clarice, livro de Benjamin Moser. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.275.

MixLit 55: Uma visita à sra. Mercado

Sentada no parapeito, cabisbaixa, imersa em pensamentos1, embriaguez2, juntamente alegre e triste3, a sra. Mercado só percebeu a nossa aproximação quando Poirot estacou diante dela e a saudou4.

— Q-q-quanto é?5

Ela ficou curiosa pela figura: terno, gravata, o cabelo penteado com capricho, mudando do cinza pro grisalho. Um coroa, mais um. Estava se especializando no antendimento à terceira idade6.

— Quanto você tem aí?7

Viuva, baixinha, feia, gordinha8, um hálito de mamute9. Só não tenho medo dela quando estamos na cama10, eu disse11, De bom não tem nada, nem o exotismo12.

— Que importa?13, me disse14 Poirot15 — Xá comigo!16

— Faça bom proveito!17

Acendi um cigarro, ele trouxe uma garrafa de cerveja, dois copos, não podia ver ninguém bebendo sozinho, “Me dá aflição!”, brindamos, sumiu atrás da mulher18.

Meu respeito por ele aumentou19.


1 Agatha CHRISTIE Morte na Mesopotâmia. Tradução de Henrique Guerra. Rio Grande do Sul: L&PM, p.168.

2 Marçal AQUINO. Eu receberia as piores noticias dos seus lindos lábios. Sã o Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.85.

3 Machado DE ASSIS O alienista. Rio Grande do Sul: L&PM, 1998, p.87.

4 Agatha CHRISTIE. Idem.

5 Atiq RAHIMI. Syngué sabour – Pedra-de-paciência. Estação Liberdade. P.110.

6 Marçal AQUINO. Idem.

7 Atiq RAHIMI. Idem, p.111.

8 Muriel BARBERY. A elegância do ouriço. Tradução de Rosa Freire D`Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.115.

9 Muriel BARBERY. Idem.

10 Péter ESTERHÁZY. Uma mulher. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.96.

11 Marçal AQUINO. Idem, p.217.

12 Péter ESTERHÁZY. Idem, p.83.

13 Machado DE ASSIS. Idem, p.25.

14 Luiz RUFFATO. Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia  das Letras, 2009, p.19.

15 Agatha CHRISTIE. Idem.

16 Luiz RUFFATO. Idem.

17 Muriel BARBERY. Idem, p.34.

 18 Luiz RUFFATO. Idem.

 19 Agatha CHRISTIE. Idem, p.171.

Imagem: pintura de Emile Nolde, “Strange couple brown ground”.

MixLit 46: Inventar a terra

Depois de ter transformado a sua casa na vila, em Amarante, num verdadeiro museu etnológico de Angola, tendo consumido em vão essa fúria que o movia desde pequeno, João Teixeira de Vasconcelos pôs-se a escrever o África vivida, que termina desta forma1:

“Já fui um rapaz e já fui uma jovem, já fui um arbusto e já fui um pássaro da floresta, assim como já fui um peixe mudo do mar2. O mundo vive, mesmo de outra maneira3.”

Pela sua expressão atenciosamente irônica entendi que ele não estava interessado4 naquele interior familiar5, na nossa terra6, em ninguém do mundo que freqüentava7.

João baixou a cabeça no peito8:

– Você acha que meu livro está pronto, Celeste?9

– Acorda, homem, que estás na tua terra!10 Que obsessão mais deselegante11. Um livro grosso assim…12 Para quem você escreveu isso?13

Confuso e aflito consigo, eriçado de interrogações, de dúvidas, de escrúpulos14, apenas desdenhou15:

– A curiosidade, essa estranha força que nos empurra para diante, mesmo quando todos os sentidos nos dizem para recuar, a curiosidade há-de levá-lo longe – eventualmente até o abismo16.

– Estas banalidades!17 Tudo na nossa terra é extraordinário18. Você é que deu pra implicar19. Tem os terrenos mais férteis do mundo…20

– Que valem, portanto? Nada!… E nada, nada e nada milhões de vezes nada21.

João22 olhou para o mato sem saber o que fazer23. Percorria o globo e os planetas dentro de poucos minutos24, em silêncio25, em imaginação26. Começou a andar27.

– Adeus; tenho ainda que ver umas coisas que me faltam para logo à noite28.

Foi-se e não voltou29. Nunca mais30.

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TEXTO E IMAGEM PUBLICADOS ORIGINALMENTE NA REVISTA PESSOA, EDIÇÃO 1, EM NOVEMBRO DE 2010.

1 Miguel SOUSA TAVARES. Não te deixarei morrer, David Crockett. Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 2005, p.162.
2 Lygia FAGUNDES TELLES. Conspiração de nuvens. Rocco. Rio de Janeiro, 2007, p.96.
3 Pedro ROSA MENDES. Baía dos Tigres. Sá/Rosari. São Paulo, 2001, p.88.
4 Lygia FAGUNDES TELLES. Conspiração de nuvens. Rocco. Rio de Janeiro, 2007, p.96.
5,6,7 Lima BARRETO. Triste fim de Policarpo Quaresma. Ática. São Paulo, 1993, p.106, p.75 e p.39.
8 Dalton TREVISAN. 33 contos escolhidos. Record. Rio de Janeiro, 2005, p.137.
9 Lúcia BETTENCOURT. A secretária de Borges. Record. Rio de Janeiro, 2006, p.117.
10 Eça de QUEIRÓS. A cidade e as sereias. Villa Rica. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, 1994, p.101.
11 Reinaldo MORAES. Tanto faz. Brasiliense. São Paulo, 1982, p.140.
12 Machado de ASSIS. A idéia de Ezequiel Maia. Domínio público. Arquivo no site do Domínio Público, Brasil, p.6.
13 Cristovão TEZZA. Juliano Pavollini. Record. Rio de Janeiro, 2010, p.122.
14 António LOBO ANTUNES. Memória de elefante. Dom Quixote. Lisboa, 2007, p.45.
15 Luiz Antonio de ASSIS BRASIL. A margem imóvel do rio. L&PM. Porto Alegre, 2003, p.111.
16 José Eduardo AGUALUSA. Um estranho em Goa. Gryphus. Rio de Janeiro, 2010, p.154.
17 João do RIO. A alma encantadora das ruas. Domínio público. Arquivo no site do Domínio Público, Brasil, p.125.
18,19,20 Lima BARRETO. Triste fim de Policarpo Quaresma. Ática. São Paulo, 1993, p.105, p.27 e p.74.
21 João do RIO. A alma encantadora das ruas. Domínio público. Arquivo no site do Domínio Público, Brasil, p.125.
22 Dalton TREVISAN. 33 contos escolhidos. Record. Rio de Janeiro, 2005, p.137.
23 José Claudio da SILVA. Pai, posso dar um soco nele?. Casa do Novo Autor. São Paulo, 2003, p.7.
24 Machado de ASSIS. A idéia de Ezequiel Maia. Domínio público. Arquivo no site do Domínio Público, Brasil, p.2.
25 Olavo BILAC. Via-Láctea. Domínio público. Arquivo no site do Domínio Público, Brasil, p.2.
26 João Batista ALMEIDA GARRET. Viagens na minha terra. Domínio público. Arquivo no site do Domínio Público, Brasil, p.13.
27 José Claudio da SILVA. Pai, posso dar um soco nele?. Casa do Novo Autor. São Paulo, 2003, p.7.
28 Artur AZEVEDO. Viagem ao Parnaso. Domínio público. Arquivo no site do Domínio Público, Brasil, p.35.
29,30 João Batista ALMEIDA GARRET. Viagens na minha terra. Domínio público. Arquivo no site do Domínio Público, Brasil, p.13 e p.32.

IMAGEM: Desenho de Maria Beatriz Machado: http://www.flickr.com/photos/mariabiamachado

Mixlit 4: Os deslizes

Após a discussão de toda noite, ele demora-se no banheiro. Ali no espelho xinga-se de rato piolhento, mergulha o rosto na água fria. Mais calmo, volta para o quarto: sua alma coágulo de sangue negro. De nada serviu a espera.(1)

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Ao levantar da cama, a primeira ideia que me acudiu foi aquela que escrevi ontem, à meia-noite: “Esta moça (Fidélia) foge a alguma coisa, se não foge a si mesma.(2) O melhor que faço é me casar com ela. Depois posso moldar-lhe a alma como bem desejar. É um pedaço de cera em minhas mãos: darei a ela a forma que eu quiser. Durante minha ausência, quase a arrebataram de mim, devido à sua inocência exagerada. Mas, com tudo isso, ainda acho melhor que a mulher que escolhi erre por esse lado. Essa espécie de erro tem remédio bem fácil. Toda pessoa simples obedece a lições. E quando alguém a desvia do caminho do bem, duas palavras certas fazem com que retorne imediatamente. Mas uma mulher esperta é outro animal. Nossa sorte toda pende e depende apenas da sua vontade: nada a afastará daquilo a que se propôs, e tudo o que dissermos é orquestra pra surdos. Usa a inteligência para ridicularizar nossas lições, para transformar seus vícios em virtudes. E pra chegar a seus fins inomináveis encontra desvios capazes de iludir o mais habilidoso.(3) Se para outras mulheres a sedução é uma segunda natureza, uma rotina insignificante, para ela, de agora em diante, é o campo de uma investigação importante que deve ajudá-la a descobrir aquilo de que é capaz. Mas por ser tão importante, tão grave, sua sedução perdeu toda a leveza, é forçada, intencional, excessiva. O equilíbrio entre a promessa e ausência de garantia (em que reside precisamente o autêntico virtuosismo da sedução!) foi rompido. Está pronta demais…” (4)

…Até que chegava o momento em que, entre palavras de ódio, surgiam palavras doces. E essas palavras doces acabavam se transformando em beijos doces (desesperados), em toques doces (desesperados), em carinhos doces (desesperados). Então, fazíamos amor (doce, desesperado) como nunca antes. Devorávamo-nos como se tivéssemos acabado de nos conhecer, como se entre nós não houvesse rancores. Os corpos melados sobre a cama, o cheiro do sexo no quarto inteiro. Depois de muito tempo, decidíamos tomar um banho gelado, e era como se fôssemos duas crianças, como se nunca tivéssemos brigado, como se nunca tivéssemos terminado, como se sempre tivéssemos sido um do outro, como se fôssemos sempre um do outro(5) ao fim, assim que ela erga e vibre inquieta o seu turíbulo. E alto, longo, à turva; sobrelevada nave; a estrela-sino tange, enquanto, calmas; as espirais do incenso ascendem, nuvem sobre nuvem; rumo-ao-vazio, do venerável; resíduo de almas.(6)

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1. Dalton TREVISAN. Contos eróticos. 1984. Editora Record. Rio de Janeiro. 1999, 5ª edição, pg.41.

2. Machado DE ASSIS. Memorial de Aires. 1908. Klick Editora. Sem local, sem data, pg.11.

3. MOLIÉRE. Escola de mulheres. 1662 (1ª encenação). Tradução de Millôr Fernandes. Círculo do Livro. São Paulo. Sem data, pgs.58, 59.

4. Milan KUNDERA. A insustentável leveza do ser. 1984. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. Companhia das Letras. São Paulo. 2007, 9ª reimpressão, pgs. 164, 165.

5.Tatiana SALEM LEVY. A chave de casa. 2007. Editora Record. Rio de Janeiro. pgs.91, 92.

6. James JOYCE. Pomas, um tostão cada. 1913-1916. 1927 (1ª publicação). Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. Editora Iluminuras. São Paulo. 2001, poema: Noturno, pg.63.