Com um semblante consternado1, ela se inclinou, deu-me um beijo e murmurou: “Você está com aquele seu olhar de órfão novamente.”2
“Não”3, eu disse, também pesando cuidadosamente.4
Acendi uma vela aromática que repousei em cima do meu livro preferido, O caminho de Bodisatva, fiquei olhando pra chama quentinha perto do meu rosto, e chorei de um modo tranquilo.5 Andei até um canto da casa, espreitei…6
Se não fosse aquela briga, se por causa dela meu pai não tivesse mudado como que por encanto, e da noite para o dia tivesse deixado de falar comigo…7 Faz muitos anos isso.8
A questão era: o que eu faria a respeito?9
Tenho algumas ideias, mas não sei se terei força suficiente para realizá-las.10 Não planejei isso, foi uma situação em que a vida me colocou.11 Espero um dia poder sair.12
1 Josué MONTELLO. O camarote vazio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p.34.
2 Alain DE BOTTON. Ensaios de amor. Tradução de Fábio Fernandes. Rio de Janeiro/Rio Grande do Sul: Rocco/L&PM, 2001, p.107.
3 Machado de ASSIS. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Garnier, 1998, p.207.
4 Péter ESTERHÁZY. Os verbos auxiliares do coração. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.19.
5 Dodô AZEVEDO. Pessoas do século passado. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p.73.
6 Witold GOMBROWICZ. Cosmos. Tradução de Tomasz Barcinski e Carlos Alexandre Sá. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.70.
7 Michel LAUB. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.50.
8 Marcel PROUST. No caminho de Swann – Em busca do tempo perdido. Tradução de Mário Quintana. São Paulo: Abril, 1979, p.27.
9 Agatha CHRISTIE. Morte na Mesopotâmia. Tradução de Henrique Guerra. Rio Grande do Sul: L&PM, 2011, p.161.
10 Mario BELLATIN. Salão de beleza. Tradução de Maria Alzira Brum Lemos. Rio Grande do Sul: Leitura XXI, 2007, p.68.
11 Daniel RUSSEL RIBAS. Conto “Carta”, publicado no blog Revista Lama, em 11 de abril de 2012, sétima linha.
12 Clarice LISPECTOR, em carta para a irmã Tânia, de 1948, em: Clarice, livro de Benjamin Moser. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.275.