Archive for maio \31\-03:00 2010

MixLit 14: Achei que era louco

Estudiamos lo mismo, declarou, e começou a me explicar sobre o que era sua tese. Discorreu sobre o sujeito fragmentado pós-moderno e os espaços confinados da pós-modernidade; sobre o fim da utopia, sobre Baudrillard, Lyotard e vários outros autores, alguns dos quais eu nunca tinha ouvido falar; depois partiu para uma autora chilena, Eltit, e então falou do último livro, como tinha gostado, ou não, não entendi direito.(1)

Es más real el agua de la fuente o la muchacha que se mira en ella?(2)

– Que diferença isso pode fazer agora?(3)

Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira.(4)

Crúzame tu existencia, suponiendo que mi corazón está destruido.(5)

– Você está completamente louco.(6)

Ele já estava se levantando quando me lembrei de perguntar:

– Se acontecer alguma coisa com você, a quem eu devo avisar?

– O que pode me acontecer?

E acrescentou, já saindo pela porta:

– Isso tudo não é uma ficção?(7)

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1. Paloma VIDAL. Algum lugar. 2009. Editora 7Letras. Rio de Janeiro. 2009, pg.34.

2. Nicanor PARRA. Poemas & Antipoemas. 1954. Editorial Universitaria. Santiago, Chile. 2008, 6ª reimpressão, poema: “Preguntas a la hora del té”, pg. 47.

3. Nathan ENGLANDER. Para alívio dos impulsos insuportáveis. 1999. Tradução de Lia Wyler. Editora Rocco. Rio de Janeiro. 2007, pg.29.

4. Chico BUARQUE. Budapeste. 2003. Companhia das Letras. São Paulo. 2003, 2ª edição, 3ª reimpressão, pg.5.

5. Pablo NERUDA. Residência na Terra I. 1925-1931. Tradução de Paulo Mendes Campos. L&PM Pocket. Rio Grande do Sul. 2007, edição bilíngue, pg.32.

6. Henrik IBSEN. Um inimigo do povo. 1882. Tradução de Pedro Mantiqueira. L&PM Pocket. Rio Grande do Sul. 2007, pg.27.

7. Luis Fernando VERISSIMO. Os espiões. 2009. Editora Alfaguara/Objetiva. Rio de Janeiro. 2009, pg.60.

Imagem: capa do livro “Whispering gallery”, de Andrew Burke

MixLit 13: O amor ao longo do tempo

– Principais motivos para morrer: é o que os outros esperam que se faça quando você chega à minha idade; a decrepitude e senilidade iminentes; o desperdício de dinheiro – gastando a herança – para manter viva uma saca de ossos velhos incontinentes, com o cérebro morto; interesse reduzido nas notícias, fomes, guerras, etc. (1)

Carlos achou miseráveis as suas ideias. Na impossibilidade de encontrar palavras à altura da cena, tão simples e tão elevada ao mesmo tempo, respondeu com lugares-comuns sobre o destino das mulheres:

– Senhora – ele disse – é preciso sabermos esquecer nossas dores, ou então cavamos nossa sepultura.

Mas a razão é sempre mesquinha em face do sentimento; uma é naturalmente limitada, como tudo que é positivo, e o outro é infinito. Raciocinar onde é preciso sentir, isso é próprio das almas medíocres.(2)

– Que é que você está pretendendo? – ela perguntou finalmente.

– Nada, ora essa, já não falei? Quer que eu vá embora?

– Não… Pode ficar.

Sem se olharem, cada um esperava que o outro prosseguisse a conversa.(3)

– Você não quer voltar pra festa?

Laura franze as sobrancelhas.

– Acho que tá chata aquela festa.

E ri.

– Sério, você lembra o que aconteceu?

– Ahn, não muito. Eu fiquei tonta e comecei a pensar e ver umas coisas meio doidas. É isso que eu lembro.

– Talvez você devesse comer uns doces. Eu posso trazer uns doces pra você.(4)

– És um homem, tu! Tens tudo o que é preciso para te fazeres amar. Mas vamos recomeçar, não é verdade? Vamo-nos amar muito. Vês? Estou a rir, sinto-me feliz! Que dizes?(5)

– Viver é fazer mal, aos outros e a si próprio, através dos outros.(6)

– Mas você me ama.

– Por isso eu te amo.(7)

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1. Julian BARNES. Um toque de limão. 2004. Tradução de Ana Deiró. Editora Rocco. Rio de Janeiro. 2006, conto: Saber francês, pgs.190, 191.

2. Honoré de BALZAC. A mulher de trinta anos. 1842. Tradução de Casimiro Fernandes e Wilson Lousada. Círculo do Livro/Editora Globo. São Paulo. 1973, pg.132.

3. Fernando SABINO. Duas novelas de amor. 1998. Editora Ática. São Paulo. 2002, novela: Noite única, pg.85.

4. Carol BENSIMON. Pó de parede. Não Editora. Rio Grande do Sul. 2008, pgs.38, 39.

5. Gustave FLAUBERT. Madame Bovary. 1857. Tradução de Fernanda Ferreira Graça. Abril/Controljornal Edipresse. Linda-a-velha, Portugal. Biblioteca Visão, pg.285.

6. Albert CAMUS. Diário de viagem – A visita de Camus ao Brasil. 1949. Publicado na França em 1978. Tradução de Valerie Rumjnek Chaves. Editora Record. Rio de Janeiro.  Sem data, 2ª edição, pg.116.

7. Ian McEWAN. Na praia. 2007. Tradução de Bernardo Carvalho. Companhia das Letras. São Paulo. 2008, 6ª reimpressão, pg.100.

Imagem: Joan Brockwoldt, “The elderly couple”, http://joanbreckwoldt.blogspot.com

MixLit 12: Coisa desagradável

Às dez e meia estávamos como dois colegiais na recepção do hotel, esperando. Chegaram Oscar Niemayer e José Aparecido, e desafiando, uma vez mais, o calor, partimos rumo a Canoas, um paraíso na Gávea.  A casa foi construída em 1953, mas desde há anos que Oscar não a habita, porque o sítio se tornou pouco seguro.(1)

Nós dois, brancos e rodeados por dez ou doze negros, e nada com que nos preocuparmos, nada a temer da parte deles: não éramos nós os seus opressores nem eram eles os nossos inimigos – o inimigo-opressor que nos aterrorizava a todos era a forma pela qual a sociedade estava organizada e era governada.(2)

– Consegue viver com isso?

– Você acha que um leão deve preocupar-se com as gazelas que mata? Acha que seria um leão melhor caso se preocupasse? A mim parece-me, pelo contrário, que seria um mau leão. A natureza dele é comer as gazelas. O destino das gazelas é deixarem-se comer pelos leões.(3)

Todos se sentiram desanimados quando viram o sol passar sobre suas cabeças e começar a declinar em direção ao longínquo horizonte. (4) Mal dava para perceber o recorte dos morros contra o céu, com a imponente silhueta da pedra da Gávea ao fundo.(5) No jardim, lá embaixo, a brisa levantava de vez em quando a bandeira adornada de um caduceu. O céu voltara a nublar-se em toda parte. Desapareceu o sol, e quase imediatamente surgiu um frio pouco hospitaleiro.(6)

– Embaixada cruel! Viagem malograda, preparativos inúteis, favor devolver-me as fotos.(7)

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1. José SARAMAGO. Cadernos de Lanzarote II. 1998. Companhia das Letras. São Paulo. 1999, pgs.62,63.

2. Philip ROTH. Casei com um comunista. 1998. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras. São Paulo. 2005, 1ª reimpressão, pg.126.

3. José Eduardo AGUALUSA. Um estranho em Goa. 2000. Editora Gryphus. Rio de Janeiro. 2001, pg.65.

4. J.K. ROWLING. Os contos de Beedle, O Bardo. 2008. Tradução de Lia Wyler. Editor Rocco. Rio de Janeiro. 2008, pg.29.

5. Luiz Alfredo GARCIA-ROZA. Céu de origamis. 2009. Companhia das Letras. São Paulo. 2009, pg.142.

6. Thomas MANN. A montanha mágica. 1924. Tradução de Herbert Caro. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 2000, 9ª reimpressão, pg.110.

7. Julio CORTÁZAR. A volta ao dia em 80 mundos – tomo II. 1967. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Civilização Brasileira/Editora Record. Rio de Janeiro. 2008, pg.160.

MixLit 11: Sim, me queixo

Não seguro a barra dessa solidão espessa sem um copo na mão. E um charo bem enrolado. Tem razão o Pascal: o homem não toma jeito enquanto não aprende a ficar quieto no seu quarto. Ele diz também que a calma entedia o cidadão e o obriga a sair e “mendigar o tumulto”. Jogo mais uísque nas pedras.(1)

Digo-lhe francamente que começo a ter medo de não conseguir escapar disto, pois minha constituição seria bastante boa se não tivesse que jejuar tanto tempo, mas precisei jejuar ou então trabalhar menos, e sempre que possível escolhi a primeira solução, até o momento em que me vi excessivamente fraco. Como continuar a resistir?(2) A vida seria impossível se tomássemos consciência dela. Felizmente não o fazemos. Vivemos com a mesma inconsciência que os animais, do mesmo modo fútil e inútil, e se antecipamos a morte, que é de supor, sem que seja certo, que eles não antecipam, antecipamo-la através de tantos esquecimentos, de tantas distrações e desvios, que mal podemos dizer que pensamos nela.(3)

Eu odeio ler jornal. Tem muita realidade e ela não me agrada, então pra que eu vou ficar fazendo um troço desagradável só pra mostrar que sei das coisas. Não fico fazendo tipo e não sei e não sei e pronto. To me danando pra tudo isso.(4) Um homem capaz de compreender Buda, um homem que tem noção dos céus e dos abismos da natureza humana, não deveria viver num meio em que domina o senso comum, a democracia e a educação burguesa.(5) Em resumo, eu nunca encontrei um matemático puro em que pudesse confiar fora de suas raízes e de suas equações, ou algum que sustentasse clandestinamente como ponto de fé que x ao quadrado + px era absoluta e incondicionalmente igual a q, e, tendo-o feito entender o que você quer dizer, saia fora de seu alcance tão rápido quanto for conveniente, porque, acima de qualquer dúvida, ele se empenhará em derrubá-lo.(6)

Não posso atinar os meios pelos quais Deus ou a natureza moldam a personalidade, mas às vezes me pergunto por que não me deram uma vida mais fácil. Poderia existir uma pílula de personalidade, algo como um elixir, à disposição de qualquer um, que ensinasse as mais duras lições da vida sem que a pessoa tivesse que experimentá-las… mas não.(7)

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1. Reinaldo MORAES. Tanto faz. 1980. Editora Brasiliense. São Paulo. 1982, cantadas literárias, 2ª edição, pg.42.

2. Vincent VAN GOGH. Cartas a Théo. 1879-1890. Tradução de Pierre Ruprechet. Editora L&PM. Rio Grande do Sul. 1997, pg.43.

3. Fernando PESSOA. Livro do desassossego. 1913-1934. Companhia das Letras. São Paulo. 2009, edição de bolso, 3ª reimpressão, pg.372.

4. Ana Paula MAIA. O habitante das falhas subterrâneas. 2003. Editora 7letras. Rio de Janeiro. 2003, Coleção Rocinante, pg.141.

5. Herman HESSE. O lobo da estepe. 1955. Tradução de Ivo Barroso. Editora Record. Rio de Janeiro. Sem data, 15ª edição, pg.70.

6. Edgar Allan POE. Os assassinatos na Rua Morgue/A carta roubada. 1844. Tradução de Erline T.V. dos Santos. Editora Paz e Terra. 1996, 2ª edição, pgs.84, 85.

7. Arnaldo BAPTISTA. Rebelde entre os rebeldes. 1980 e algo. Editora Rocco. Rio de Janeiro. 2007, pg.19.

MixLit 10: Retorno

Me deu vontade de mijar. Provavelmente, por causa do nervosismo. Uma última mijada, então. Fui na calçada mesmo, atrás de um carro. Quanto terminei, tremi e o ar me faltou na garganta,(1) não obstante, me pareceu absurdo dizer isso a meu pai. Fazia tempo que lhe dava uma falsa imagem de mim. Me pareceu então que não tinha sentido dizer-lhe que, ainda assim, muitas coisas continuavam me oprimindo e que eu não era uma pessoa a salvo de dificuldades. Que, com o tempo, minhas dificuldades aumentavam também. Ele deve até acreditar, pensei, que não tenho dificuldades.(2)

– Nesta noite em que estamos juntos não tem sentido falar de mais nada além da verdade, do essencial, porque o nosso encontro não se repetirá e talvez já não serão muitos os dias e as noites que se seguirão, e menos ainda as noites especiais como esta. Talvez você se lembrará de que uma vez, faz muito tempo…(3)

Afrouxei o colarinho e enxuguei a testa com o punho. Soltei um pigarro, ainda incapaz de encarar seus olhos. Senti que um medo irracional e perturbador começou a me percorrer e a dor atrás dos meus olhos ficou mais forte. Meu pai continuou a me fitar, até que comecei a me revirar e nós dois nos demos conta de que eu não tinha nada a lhe oferecer.(4)

– Diga-me, por favor, o que fizeste.

– Como? Não fiz nada, respondi.

– Vamos lá, pense bem. Já passaste dos quarenta, não é mesmo? É tempo de ter juízo! O que estás pensando? Acha que não estou sabendo de todas as tuas molecagens? Agora destes para cercar a filha do diretor? Olha bem para ti, pensa um minuto naquilo que tu és! Um zero, não mais do que isso. E não tens um tostão. Te olha no espelho só por um instante, será que não te enxergas?(5)

O negócio é que eu tinha de dizer alguma coisa.

Era uma situação embaraçosa pra burro.

– Apanha tua bagagem e volta correndo pra cá. Vou deixar a porta só encostada.

– Muito obrigado.(6)

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1. Daniel GALERA. Dentes guardados. 2004. Livros do Mal. Rio Grande do Sul. 2004, conto: Subconsciente, pg.41.

2. Thomas BERNHARD. Perturbação. 1969. Tradução de Hans Peter Welper e José Laurenio de Melo. Editora Rocco. Rio de Janeiro. 1999, pg.76.

3. Sandor MÁRAI. As brasas. 1942. Tradução de Rosa Freire D´Aguiar. Companhia das Letras. São Paulo. 2008, 8ª reimpressão, pg.97.

4. Raymond CARVER. Iniciantes. 1981 (What we talk about when we talk about love). Tradução de Rubens Figueiredo. Conto: O lance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pg.83.

5. Nikolai GOGOL. Diário de um louco (precedido de O Nariz). Entre 1932 e 1952. Tradução de Roberto Gomes. L&PM Pocket. Rio Grande do Sul. 2007, pg.65.

6. J.D. SALINGER. O apanhador no campo de centeio. 1945. Tradução de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster. Editora do Autor. Rio de Janeiro. Sem data, pg.187.