À noite, durante o jantar, após eu1 fazer a barba2, meu pai3 veio se sentar no sofá, ao meu lado. Queria me dizer alguma coisa. Eu o adivinhava desde o começo do jantar, e já sabia do que se tratava.
– Como bebi! – disse ele – Isso é pior do que qualquer veneno. Mas esta é a última vez. Palavra! A última vez! Tenho força de vontade…4
Coçava a cabeça com a caneta como se isto pudesse devolver-lhe a consciência interrompida pelo5 seu conhaque francês6.
– Chega um momento em que não se pode mais continuar7 – continuava falando8 – Livre! Enfim livre!9
Levantou-se e10 avançou dois passos, os braços estirados como para abraçar alguém, sem ver nada. Infelizmente escorregou no soalho muito lustroso e parou. Veio-lhe então a ideia de que escorregar era inconveniente. Não devia escorregar11.
– Me desculpa. Estou meio alegre. Esta noite nunca mais12.
Não ouço outra coisa desde que existo13. Que tragédia, meu pai14.
1 Vladimir NABOKOV. Lolita. Tradução de Jorio Dauster. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003, p.49.
2 Georg BÜCHNER. Woyzeck. 1835. Tradução de Tércio Redondo. Hedra. São Paulo. 2003, p.63.
3 Orhan PAMUK. Neve. 2002. Tradução de Luciano Machado. Companhia das Letras. São Paulo. 8ª edição, 2007, p.137.
4 Anton TCHEKHOV. Estranha confissão. 1945. Tradução do castelhano por Bernardo Ajzenberg. Editora Planeta. São Paulo. 2005, pg.63.
5Mariel REIS. A caderneta. Em: Revista Ficções 18. 7Letras. Rio de Janeiro. 2009, p.62.
6Autran DOURADO. Os mínimos carapinas do nada. Em: Os cem melhores contos brasileiros do século. Org. de Italo Moriconi. Objetiva. Rio de Janeiro. 2000, p.514.
7 e 10 Milan KUNDERA. O livro do riso e do esquecimento. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1987, p.47, 55.
8 Jorge Luis BORGES. Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.105.
9, 12 e 14Dalton TREVISAN. 33 contos escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.92, 93 e 96.
11 Graciliano RAMOS. Insônia. Rio de Janeiro: Record. 2001, pg.100.
13Thomas BERNHARD. Montaigne – Uma narrativa. Em: Revista Serrote. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011, p.232.