Archive for maio \30\-03:00 2011

MixLit 48: Parar antes de ter que parar

À noite, durante o jantar, após eu1 fazer a barba2, meu pai3 veio se sentar no sofá, ao meu lado. Queria me dizer alguma coisa. Eu o adivinhava desde o começo do jantar, e já sabia do que se tratava.

– Como bebi! – disse ele – Isso é pior do que qualquer veneno. Mas esta é a última vez. Palavra! A última vez! Tenho força de vontade…4

Coçava a cabeça com a caneta como se isto pudesse devolver-lhe a consciência interrompida pelo5 seu conhaque francês6.

– Chega um momento em que não se pode mais continuar7 – continuava falando8 – Livre! Enfim livre!9

Levantou-se e10 avançou dois passos, os braços estirados como para abraçar alguém, sem ver nada. Infelizmente escorregou no soalho muito lustroso e parou. Veio-lhe então a ideia de que escorregar era inconveniente. Não devia escorregar11.

– Me desculpa. Estou meio alegre. Esta noite nunca mais12.

Não ouço outra coisa desde que existo13. Que tragédia, meu pai14.


1 Vladimir NABOKOV. Lolita. Tradução de Jorio Dauster. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003, p.49.

2 Georg BÜCHNER. Woyzeck. 1835. Tradução de Tércio Redondo. Hedra. São Paulo. 2003, p.63.

3 Orhan PAMUK. Neve. 2002. Tradução de Luciano Machado. Companhia das Letras. São Paulo. 8ª edição, 2007, p.137.

4 Anton TCHEKHOV. Estranha confissão. 1945. Tradução do castelhano por Bernardo Ajzenberg. Editora Planeta. São Paulo. 2005, pg.63.

5Mariel REIS. A caderneta. Em: Revista Ficções 18. 7Letras. Rio de Janeiro. 2009, p.62.

6Autran DOURADO. Os mínimos carapinas do nada. Em: Os cem melhores contos brasileiros do século. Org. de Italo Moriconi. Objetiva. Rio de Janeiro. 2000, p.514.

7 e 10 Milan KUNDERA. O livro do riso e do esquecimento. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1987, p.47, 55.

8 Jorge Luis BORGES. Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.105.

9, 12 e 14Dalton TREVISAN. 33 contos escolhidos.  Rio de Janeiro: Record, 2005, p.92, 93 e 96.

11 Graciliano RAMOS. Insônia.  Rio de Janeiro: Record. 2001, pg.100.

13Thomas BERNHARD. Montaigne – Uma narrativa. Em: Revista Serrote. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011, p.232.


MixLit 47: Era época de estudos

De suas bocas saíam refrãos que se repetiam como preces budistas, como resmungos incompreensíveis repetidos pela multidão1. Para nos fazerem estudar mais, eles nos falavam de empregos em que você ficava anos bombeando esgoto, incinerando lixo, borrifando veneno. Removendo asbesto. Havia empregos tão horríveis que eles diziam que ficaríamos felizes em morrer mais cedo2. Todos se olhavam, sorriam e baixavam o olhar sem saber o que dizer3. Eu não tinha vontade de dizer nada, quem sabe acabaria igual a4 Santo Tomás, buscando definições precisas para aqueles conceitos tão voláteis de bem, justiça e verdade5. Meu pai6 não conseguia explicar muitas dessas coisas. Mas7 dizia que os judeus sempre devem ter profissões que possam exercer em qualquer circunstância8. Lembro bem9: “Tenho tido paciência10. É inteligência minha haver sido muitas coisas em muitos lugares, para poder tornar-me um – para poder alcançar uma coisa11 neste mundo que não se pode mudaa-a-a-ar…”, cantarolou12 com graça e humor13.

Só me aliviaria lhe dando uns bons socos na cara14.


1 Dai SIJIE. Balzac e a costureirinha chinesa. Tradução de Vera Lúcia dos Reis. Rio de Janeiro: Alfaguara/Objetiva, 2008, p.85.

2 Chuck PALAHNIUK. Sobrevivente. Tradução de Marcelo Oliveira Nunes. São Paulo: Nova Alexandria, p.85.

3 Andrés NEUMAN. O viajante do século. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. Rio de Janeiro: Alfaguara/Objetiva, 2011, p.267.

4 Lívia GARCIA-ROZA. O sonho de Matilde. Rio de Janeiro: Record, 2010, p.45.

5 Alberto MUSSA. O trono da rainha Jinga. Rio de Janeiro: Record, 2007, p.29.

6 Michel LAUB. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.44.

7 Robert MUSIL. O jovem Torless. 1906. Tradução de Lya Luft. Coleção Grandes Romances. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1978, p.193.

8 Michel LAUB. Idem, p.44.

9 Arthur RIMBAUD. Uma temporada no inferno. 1873. Tradução de Paulo Hecker Filho. Editora L&PM. Rio Grande do Sul. Edição bilíngue, 2006, pg.17..

10 Arthur RIMBAUD. Idem, pg. 69.

11 Friedrich NIETZSCHE. Ecce homo – Como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.71.

12 Irvine WELSH. Trainspotting. Tradução de Daniel Galera e Daniel Pellizzari. Rocco. Rio de Janeiro. 2004, p.310.

13 Moacyr SCLIAR. Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. Rio Grande do Sul: L&PM, 1996, p.12.

14 MOLIÈRE. Escola de mulheres. Tradução de Millôr Fernandes. São Paulo: Círculo do Livro, sem data, p.101.