Ele estava no quarto, empurrando roupas para dentro de uma mala, quando ela chegou à porta.
– Estou contente por você estar indo embora, estou contente por você estar indo embora! – disse ela – Está ouvindo?1
– Você estava muito irritada agora há pouco.
– Fui apanhada de surpresa.
– Peço desculpas por isso.2 Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas e ancas das mulheres.3 É muito difícil ser inteligente neste corpo.4 Não é você que tem de suportar isso.5
“Por que ele está me dizendo isso?”, pensou Liôlia.6 Sentiu um duro apertão na traqueia, e7 teve um estremecimento íntimo.8 A tentação de9 beijos cheios de paixão, e tais como nunca recebera, fizeram-na de repente esquecer que talvez ele amasse outra mulher. Dali a pouco já não o considerava culpado.10 Estava jogando algum jogo, no qual precisava mover-se rapidamente11. Curvou-se em cima dele para sussurrar umas últimas palavras em seu ouvido:12
– Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar calado; ao contrário – rua!13
Ele não respondeu. Foi ela quem se afastou, somente para voltar mais meiga e mais ousada. Tornou-se tão afoita, tão desesperada, que o deixou imaginando se algum dia conhecera a verdadeira natureza de sua mulher.14
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1 Raymond CARVER. Iniciantes. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.234.
2 Woody ALLEN. Adultérios. Tradução de Cássia Zanon. Rio Grande do Sul: L&PM, 2011, p.63.
3 Murilo MENDES. Poemas e Bumba-meu-Poeta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p.61.
4 Gonçalo M. TAVARES. O homem ou é tonto ou é mulher. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005, p.31.
5 William FAULKNER. O som e a fúria. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, pg.264.
6 Anton TCHECKHOV. Um negócio fracassado e outros contos de humor. Tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Rio Grande do Sul: L&PM, 2010, p.29.
7 Domingos AMARAL. Quando Lisboa tremeu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011, p.18.
8 José de ALENCAR. Lucíola. São Paulo: Ática, 1998, p.119.
9 Jorge Luis BORGES. Discussão. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.42.
10 STENDHAL. O vermelho e o negro. Tradução de Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify. 2008, p.85.
11 Patrick SÜSKIND. O perfume – história de um assassino. Tradução de Flávio R- Kothe. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.178.
12 J.M. COETZEE. Vida e época de Michael K. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.206.
13 Aluísio AZEVEDO. O cortiço. São Paulo: Ática, 1992, p.95.
14 Nathan ENGLANDER. Para alívio dos impulsos insuportáveis. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p.205.
Imagem: Bruce French, “Darkness is the absence of light”.