Ela diz: Tenho uma coisa para contar(1).
– Hora do rush em Déli. Carros, scooters, motos, riquixás motorizados, táxis pretos, todos brigando por um lugar nas ruas. A poluição é tanta que os motociclistas usam um lenço no rosto; sempre que a gente pára num sinal vermelho, vê um monte de homens de óculos escuros e máscaras no rosto, como se, naquela manhã, a cidade inteira tivesse resolvido assaltar um banco(2). Eu estava lendo um romance de Bellow (O planeta do Sr. Sammler), isso há quase uma semana. Tinha comprado o livro numa banca porque precisava fazer hora enquanto renovavam meu visto. Tomei um ônibus que vai pela rua 42, sentei e comecei a ler. De repente levanto o rosto e vejo(3) desaparecer de velhice todos aqueles por quem gostava de ser chamada. Os pais da Madeira, as filhas de Moçâmedes, os netos do Lubango. Será mais fácil assim, não saberão nomear quem morreu(4). Não sentia mais presenças fraternais ao redor de mim. Meu único recurso era meu diário íntimo; depois que ruminava nele meu tédio, minha tristeza, recomeçava a aborrecer-me tristemente(5).
Estava sozinha(6).
________________
1. Salman RUSHDIE. O ninho do pássaro de fogo. 1998. Tradução de José Rubens Siqueira. Conto da coletânea “Contando histórias”, de Nadine Gordimer (org.), 2004. Companhia das Letras. São Paulo. 2007, pgs.62,63.
2. Aravind ADIGA. O tigre branco. 2008. Tradução de Maria Helena Rouanet. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 2008, pg.114.
3. Ricardo PIGLIA. Respiração artificial. 1980. Tradução de Heloísa Jahn. Companhia das Letras. São Paulo. 2010, edição de bolso, pg.85.
4. Pedro Rosa MENDES. Baía dos tigres. 2001. Sá Editora e Edições Rosari. São Paulo. 2001, pg.113.
5. Simone DE BEAUVOIR. Memórias de uma moça bem-comportada. 1958. Tradução de Sérgio Milliet. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1983, 2ª edição, pg.210.
6. Paulo LINS. Cidade de Deus. 1997. Companhia das Letras. São Paulo. 2003, 2ª edição, 6ª reimpressão, pg.48.