Archive for agosto \30\-03:00 2010

MixLit 27: Ela tem algo para contar

Ela diz: Tenho uma coisa para contar(1).

– Hora do rush em Déli. Carros, scooters, motos, riquixás motorizados, táxis pretos, todos brigando por um lugar nas ruas. A poluição é tanta que os motociclistas usam um lenço no rosto; sempre que a gente pára num sinal vermelho, vê um monte de homens de óculos escuros e máscaras no rosto, como se, naquela manhã, a cidade inteira tivesse resolvido assaltar um banco(2). Eu estava lendo um romance de Bellow (O planeta do Sr. Sammler), isso há quase uma semana. Tinha comprado o livro numa banca porque precisava fazer hora enquanto renovavam meu visto. Tomei um ônibus que vai pela rua 42, sentei e comecei a ler. De repente levanto o rosto e vejo(3) desaparecer de velhice todos aqueles por quem gostava de ser chamada.  Os pais da Madeira, as filhas de Moçâmedes, os netos do Lubango. Será mais fácil assim, não saberão nomear quem morreu(4). Não sentia mais presenças fraternais ao redor de mim. Meu único recurso era meu diário íntimo; depois que ruminava nele meu tédio, minha tristeza, recomeçava a aborrecer-me tristemente(5).

Estava sozinha(6).

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1. Salman RUSHDIE. O ninho do pássaro de fogo. 1998. Tradução de José Rubens Siqueira. Conto da coletânea “Contando histórias”, de Nadine Gordimer (org.), 2004. Companhia das Letras. São Paulo. 2007, pgs.62,63.

2. Aravind ADIGA. O tigre branco. 2008. Tradução de Maria Helena Rouanet. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 2008, pg.114.

3. Ricardo PIGLIA. Respiração artificial. 1980. Tradução de Heloísa Jahn. Companhia das Letras. São Paulo. 2010, edição de bolso, pg.85.

4. Pedro Rosa MENDES. Baía dos tigres. 2001. Sá Editora e Edições Rosari. São Paulo. 2001, pg.113.

5. Simone DE BEAUVOIR. Memórias de uma moça bem-comportada. 1958. Tradução de Sérgio Milliet. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1983, 2ª edição, pg.210.

6. Paulo LINS. Cidade de Deus. 1997. Companhia das Letras. São Paulo. 2003, 2ª edição, 6ª reimpressão, pg.48.

MixLit 26: Novo dia

– Que dia é hoje?

– É sábado. São 9 horas. Telefonei para o hospital e disse que você estava doente.

– Meu Deus, então dormi durante 24 horas.

– Fiz este pequeno desjejum para você.

– Obrigada, foi muito gentil, mas(1) eu gostaria de visitar a sepultura do meu pai em Livorno.

– Quem lhe disse que ele tinha um túmulo?

– Ninguém me disse. Todo mundo que morre tem uma sepultura.

– Quero dizer, por que achou que era em Livorno?

– Porque era lá que ele morava.

– O que diria se seu pai estivesse vivo?

– Não pode estar.

– Imagine se eu lhe dissesse que ele estaria?

– Você me disse que ele estava morto(2). (Ainda meio tonto) Juro que puseram alguma droga naquela bebida, ainda estou tonto!… Nunca me aconteceu isso antes(3). Quem te trouxe?

– Nada disso aí é novidade para mim.

– Qual é seu nome?(4)

– Às vezes te admiro mais do que de costume, meu filho(5).

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1. Ingmar BERGMAN. Face a face. 1976. Tradução de Jaime Bernardes. Nórdica. Rio de Janeiro. 1976, 2ª edição, p.68.

2. John BERGER. G. 1972. Tradução de Roberto Grey. Rocco. Rio de Janeiro. 2005, p.65.

3. Maria Clara MACHADO. Teatro IV. 1967-1987. Agir. Rio de Janeiro. Peça: O diamante do Grão-Mogol (1967). 1992, 4ª edição, p.59.

4. Cecília GIANNETTI. Paralelos – 17 contos da nova literatura brasileira (vários autores). 2004. Agir. Rio de Janeiro. 2004, conto: O último quarto à direita, p.26.

5. João UBALDO RIBEIRO. Viva o povo brasileiro. 1984. Alfaguara/Objetiva. Rio de Janeiro. 2007, 4ª edição, p.289.

Imagem: Foto de Kendra Smoot: http://www.holidash.com/fathers-day/crafts/fathers-day-crafts

MixLit 25: Ao redor

Fazia muito tempo que Tucker não ia a um lugar ouvir uma banda, e ele mal conseguia acreditar que tudo aquilo ainda lhe parecia familiar. Não deveria ter havido algum progresso desde então?(1) Parecia que a banda de botas envernizadas não sabia tocar outra coisa. O mesmo acontecia com a banda de milícia dos mulatos. Nas festas, nos desfiles, escutava-se sempre a mesma melodia lamentosa, girando redonda como um cavalo velho de carrossel(2).

A sombra de uma profunda tristeza toldou-lhe os olhos tão bondosos, os tracinhos finos das rugas que os cercavam acentuaram-se-lhe, tornando-lhe o olhar mais profundo. Relanceou a vista em redor, e disse, a si próprio se ironizando:(3)

– Ah, humilhação é quase tudo(4), homem é assim mesmo. Nem todos gostam de mostrar que estão sem fazer nada em casa, sempre saem(5).

A baba dele caía ao chão. Sua cabeça, pensamentos escassos.

Disparou o gatilho.

E por lá viram se espalhar os miolos dele(6).

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1. Nick HORNBY. Juliet, nua e crua. 2009. Tradução de Paulo Reis. Rocco. Rio de Janeiro. 2009, p.111.

2. Alejo CARPENTIER. Os primeiros contos de dez mestres da narrativa latino-americana. (vários autores) Seleção, introdução e estudos críticos de Ángel Rama, 1978. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1978, conto: Ofício de trevas, tradução de Eliane Zagury, p.47.

3. Maximo GÓRKI. Tchekov. (vários autores) Sem data. Tradução de Emília Rodrigues. Arcádia. Lisboa. 1963, p.12.

4. Carola SAAVEDRA. Toda terça. 2007. Companhia das Letras. São Paulo. 2007, p.69.

5. Autran DOURADO. Armas e corações. 1978. Rocco. Rio de Janeiro. 2006, p.30.

6. Beatriz GRIMALDI. Coletânea Prêmio Off-Flip de Literatura 2008. (vários autores) Selo OFF Flip Editora. Rio de Janeiro. 2009, conto: Gravidade, p.43.

MixLit 24: O papel de cada um

-Para sabê-lo tenho de ver você inteira. Inteira. Tenho de ver você nua. Com o máximo de detalhes. Você diz que sofreu um acidente. Diz que manca um pouco. Um pouco. Mas não me deixa ver quão pouco é esse pouco. Queria ver essa perna ferida. Como ficou. Ver seus peitos. Sua boceta(1).

Fabiana pensa em sua boceta. No que fazer com ela depois de sacá-la assim, como do nada. O que exigir dela. O que colocar nela(2). Verdade é que bastava observar aquela carne transpirante e sadia, aqueles pulsos rijos e cabeludos, aquele peito largo, aquele pescoço nervoso e duro, para que a gente fizesse logo uma idéia justa do que seria capaz o Borges em matéria de força muscular(3).

Ajeitou o vestido. Vindo ao seu encontro, sorriu, como se dissesse: tudo bem(4), este é meu papel no filme(5).

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1. Javier MARÍAS. Coração tão branco. 1992. Tradução de Eduardo Brandão. Martins Fontes. São Paulo. 1995, p.177.

2. André DE LEONES. Hoje está um dia morto. 2006. Record. Rio de Janeiro. 2006, p.19.

3. Aluísio AZEVEDO. Filomena Borges. Sem data. Martins. São Paulo. 1960, p.11.

4. Luiz Antonio de ASSIS BRASIL. A margem imóvel do rio. 2003. L&PM. Rio Grande do Sul. 2003, p.101.

5. Jack KEROUAC. Tristessa. 1960. Tradução de Edmundo Barreiros. L&PM. Rio Grande do Sul. 2006, p.101.

MixLit 23: Expectativa

21h: bebendo devagar um Ovomaltine, ele preenchia os registros com as informações do dia. O lampião Petromax era acendido (que barulho fazia), insetos mergulhavam no escuro para bombardeá-lo como flores macias (mariposas) como iridescências (besouros). Linhas, colunas e quadrados (1), odor de percevejo e perfume barato, e no coração uma sensação de derrota e ressentimento que, mesmo naquele momento, vinha de cambulhada com a recordação do corpo branco de Katharine(2).

Sua respiração acelerou-se, e com isso a sufocação tornou-se mais intensa. Sentia dor e uma ardência no peito. Esticou os dedos gelados e puxou, com força, a campainha. Celeste não tardou a entrar, e percebeu de imediato a gravidade da situação(3).

– Demônios! – explodiu (4) – Será cedo demais para um martini?(5)

Ele ficou contente de ela recusar(6); com os pés sobre a mesa, fumava, olhava o telefone, estava pronto para assumir as funções de pai a qualquer momento(7).

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1. Kiran DESAI. O legado da perda. 2006. Tradução de José Rubens Siqueira. Alfaguara/Objetiva. Rio de Janeiro. 2007, p.86.

2. George ORWELL. 1984. 1949. Tradução de Wilson Velloso. Companhia Editorial Nacional. São Pauilo. 1977, 10ª edição, p.66.

3. Lúcia BETTENCOURT. A secretária de Borges. 2006. Record. Rio de Janeiro. 2006, conto: Os três últimos dias de Marcel Proust, p.118.

4. Mark TWAIN. Histórias alegres. Sem data. Seleção e tradução de Araújo Nabuco. Cultrix. DE ONDE É? Sem data, história: O demorado passaporte russo, p.119.

5. Erich Maria REMARQUE. Sombras no paraíso. 1971. Tradução de Bélchior Cornelio da Silva. Record. Rio de Janeiro. Sem data, p.188.

6. John UPDIKE. Contando histórias. (vários autores) Organização de Nadine Gordimer. 2004. Companhia das Letras. São Paulo. 2007, conto: A jornada para os mortos, 1995, Tradução de José Rubens Siqueira, p.128.

7. Chico BUARQUE. Leite derramado. 2009. Companhia das Letras. São Paulo. 2009, p.63.