Archive for the ‘Adriana LUNARDI’ Category

MixLit 59: A criança está para chegar

Tomando nosso café com torradas1, Maria olhava-me e ria2 sugerindo nomes (para meninos)3. Eu me levantei, pedi desculpas bestamente e4 saí à rua5. Durante a caminhada6, senti que um medo irracional e perturbador começou a me percorrer7.

Um filho?8 Meu filho9. O filho é a imagem mais próxima da ideia de destino, daquilo de que você não escapa. Ou daquilo de que você não pode escapar? Por quê? Por que eu não posso tomar outro rumo?10 Não conquistei nada11. Um derrotado na vida12. Quem não pode cumprir os deveres de pai não tem direito de tornar-se pai13.

– E se eu for um homem mau? – falei, e claro, me senti imediatamente desastrado14 – Não, não pode ser assim – disse15 – O que é que me tortura?16

Andei devagar para ganhar tempo17. Maria18 me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão19 e caminhou descalça até onde eu estava20. Tinha as faces vermelhas e molhadas de lágrimas21. Passou a mão na minha cabeça22 sem olhar para mim23 e sussurrou: “Na verdade, estou com um pouco de medo.”24

Cheguei a abrir a boca, e o que eu ia dizer envelheceu de imediato25. Então nos beijamos26.

Quando senti que a porta às minhas costas se fechava, não soube se começava a rir ou se chorava. Respirei aliviado27. Eu não queria mais lutar28. O que tem que ser será bom29.


1 Mario VARGAS LLOSA. Travessuras da menina má. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p.185.

2 e 18 Albert CAMUS. Estado de sítio/O estrangeiro. Tradução de Antonio Quadros. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.211.

3 Lionel SHRIVER. Precisamos falar sobre Kevin. Tradução de Beth Viera e Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007, p.70.

4 Bernardo AJZENBERG. Olhos secos. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.29.

5 e 12 Enrique VILA-MATAS. Doutor Pasavento. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p.189.

6 Herman HESSE. Sidarta. Tradução de Herbert Caro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973, p.42.

7 Raymond CARVER. Iniciantes. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.83.

8 e 23 Milton HATOUM. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das letras (de bolso), 2010, p.45 e p.13.

9 e 13 Jean-Jacques ROUSSEAU. Emílio ou Da educação. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2004, p.297 e p.27.

10 Cristovão TEZZA. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2010, p.41.

11 e 26 Roberto BOLAÑO. Estrela distante. Tradução de Bernardo Ajzenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.142 e p.139.

14 João Gilberto NOLL. Harmada. São Paulo: Francis, 2003, p.96.

15 Leon TOLSTÓI. A morte de Ivan Ilitch. Tradução de Vera Karam. Rio Grande do Sul: L&PM, 2007, p.56.

16 Fernando PESSOA. Ficções do interlúdio. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.21.

17 Witold GOMBROWICZ. Cosmos. Tradução de Tomasz Barcinski e Carlos Alexandre Sá. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.79.

 19 Raduan NASSAR. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.9.

20 Philip ROTH. Adeus Columbus. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.81.

21 Fernando SABINO. Duas novelas de amor. São Paulo: Ática, 2002, p.35.

22 Jorge AMADO. Capitães de areia. Rio de Janeiro: Record, 1996, p.54. 

23 Ian MCEWAN. Na praia. Tradução de Bernardo Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.68.

25 Adriana LUNARDI. A vendedora de fósforos. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p.80.

26 Marçal AQUINO. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.228.

28 Clarice LISPECTOR. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.88.

29 Walt WHITMAN. Folhas de relva. Tradução de Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.153.

MixLit 56: Em casa

Quando Anton acordou, o cheiro do almoço já se espalhava pela casa inteira. Farejou: tinha torta no forno!1 Levantou-se, calçou as sandálias de couro e se arrastou até a cozinha2.  Sobre a mesa jaziam os restos do café da manhã, do qual não parecia ter sido consumida muita coisa3.  O pai estava sentado 4 , o copo de vinho à mão5.

– Dê só uma olhada – ele pediu, com6 a expressão fatigada e triste de um ator que já está farto de representar7.

Depois de8 Anton9 atacar um tomate cereja que ficava continuamente deslizando do seu garfo10, o velho11 murmurou:

– Cão, cão, falta à sua palavra12. Tens de mendigar o teu pão13. Conheço um lugar melhor para fazer isso14.

Por um momento, Anton ficou indeciso15. Repuxou o canto da boca e sorriu16.

– Eu… vou dormir. – disse17.

 – Que palhaçada é esta?18 – falou19 o pai20 –  Já não há erros; você cometeu todos eles21 – e não pôde ver como Anton tinha ficado vermelho22.


1 Angela SOMMER-BODENBURG. O pequeno vampiro. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.44.

2 Bernardo AJZENBERG. Olhos secos. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.122.

3 Franz KAFKA. O veredicto/Na colônia penal. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.15.

4 Franz KAFKA. Idem.

5 Cristovão TEZZA. Um erro emocional. Rio de Janeiro: Record, 2010, p.89.

6 Orhan PAMUK. A maleta do meu pai. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.9.

7 Lygia FAGUNDES TELLES. Apenas um saxofone. Em: Liberdade até agora. Organização de Márcio Debellian e Eduardo Coelho. Rio de Janeiro: Móbile, 2011, p.149.

8 Azar NAFISI. Lendo Lolita em Teerã. Tradução de Fernando Esteves. Rio de Janeiro: Record/BestBolso, 2009, p.196.

9 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem.

10 Azar NAFISI. Idem.

11 Hermann BROCK. Pasenow ou O Romantismo. Em: Os sonâmbulos. Tradução de Wilson Hilário Borges. São Paulo: Germinal, 2003, p.105.

12 Hermann BROCK. Idem.

13 Daniel DEFOE. Robinson Crusoé. Adaptação e revisão de Terra de Sena. Rio de Janeiro: Minerva, 1954, p.14

14 Adriana LUNARDI. A vendedora de fósforos. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p.75.

15 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem, p.37.

16 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem, p.131.

17 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem, p.132.

18 Marcelino FREIRE. Vovô valério vai voar. Em: Liberdade até agora. Organização de Márcio Debellian e Eduardo Coelho. Rio de Janeiro: Móbile, 2011, p.239.

19 Marcelino FREIRE. Idem, p.232.

20 Franz KAFKA. Idem.

21 Dorothy PARKER. Meia-idade, triste idade. Em: Serrote número 7. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2011, p.205.

22 Angela SOMMER-BODENBURG. Idem, p.1.

MixLit 40: O dia seguinte

A noite tinha sido difícil, a pior até agora, embora eu já estivesse acostumado ao interregno turbulento em que meu sono havia se transformado. Eram pequenas nebulosas no estado de vigília e não duravam mais de quinze minutos, tempo suficiente, contudo, para inquietar- me com as imagens pavorosas que apareciam nos sonhos1. Se a escuridão fosse completa, eu conseguiria encostar-me de novo, cerrar os olhos, pensar num encontro que tive durante o dia, recordar uma frase, um rosto, a mão que apertou os dedos, mentiras sussurradas inutilmente2. Tudo de repente se tornara um tanto solene, esquisito.

Eu ia dobrando as roupas e as depositava meio ritualisticamente numa valise de segunda mão que eu comprara fazia pouco tempo. Quando via uma camisa ou uma calça que acabara de colocar na valise eu respirava fundo, me vinham imagens mudas como a de uma velha vassoura varrendo folhas de uma calçada, figurações assim, rápidas e como que despojadas de uma motivação inicial, e eu me sentia a cumprir uma tarefa extrema, como se depois dali eu não tivesse que fazer malas nunca mais3.

Foi quando cinco raios sucederamse no céu, a trovoada reboou num barulho de fim do mundo4. Com uma chuva destas, que pouco lhe falta para um dilúvio, seria de esperar que as pessoas estivessem recolhidas, à espera que o tempo estiasse5. Foi a própria Ana que tomou a iniciativa de vir até a minha mesa. – Posso me sentar por um instante? – ela perguntou6 – Não retires de mim a tua mão, eu me prometo que talvez até o fim deste relato impossível talvez eu entenda, oh talvez pelo caminho do inferno eu chegue a encontrar o que nós precisamos, mas não retires a tua mão7. Pausei num sorriso de magia e encantamento, coisa familiar mesmo.

Acho que ela não ia acreditar se eu lhe dissesse a verdade8. – A questão é que minha insônia começou há 30 anos, quando nasci. E só vai terminar daqui a 30 anos, quando eu morrer9. Não podia mudar aquilo que era definitivo, mas apenas deixei os braços e as pernas perderem a força sobre a cama, apenas deixei o corpo repousar, aceitar a noite, quando, na escuridão do quarto, me convenci de que tinha tomado uma decisão10.

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1. Adriana LUNARDI. Vésperas. Rocco. Rio de Janeiro. 2002, pg.41.

2. Graciliano RAMOS. Insônia. 1947. Record. Rio de Janeiro. 2001, pg.10.

3. João Gilberto NOLL. Harmada. 2003. W11, selo Francis. São Paulo. 2003, pg.93.

4. Jorge AMADO. A morte e a morte de Quincas Berro D’água. 1959. Record. Rio de Janeiro.1998, 75a edição, pg.94.

5. José SARAMAGO. Ensaio sobre a cegueira. 1995. Companhia das Letras. São Paulo. 2004, 28a reimpressão, pg.225.

6. Sérgio SANT ́ANNA. A senhorita Simpson. 1989. Companhia das Letras. São Paulo. 2003, 3a reimpressão, pgs.160,161.

7. Clarice LISPECTOR. A paixão segundo G.H. 1964. Rocco. Rio de Janeiro. 1998, pg.73.

8. ONDJAKI. Os da minha rua. 2009. Língua Geral. Rio de Janeiro. 2009, 1a reimpressão, pg.129.

9. Gonçalo M. TAVARES. O homem ou é tonto ou é mulher. 2002. Casa da Palavra. Rio de Janeiro. 2005, pg.15.

10. José Luís PEIXOTO. Cemitério de pianos. 2006. Bertrand. Lisboa. 2007, 3a edição, pg.215.

Imagem: Foto, por Maria Beatriz Machado

ESTE TEXTO FOI PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA PESSOA, EDIÇÃO ZERO, E COM ELE É DADO ENCERRADO O TRABALHO NO MixLit DURANTE O ANO DE 2010.

Mixlit 8: O que se pode querer por aí

Cheguei a Paris dois dias depois, transformado numa ruína física e moral. Não havia pregado os olhos nem comido nada nas últimas 48 horas. Mas também cheguei – tinha ruminado isso durante toda a viagem – decidido a não me deixar abater completamente, vencer a depressão que me corroía.◊

No salão estreito, o clima era eufórico, promovido pelo lazer involuntário que os passantes gozavam àquela hora da manhã. O garçom encheu um copo de conhaque até a borda e recolheu as moedinhas que eu depositara ao lado. A metade do conteúdo sorvi em um único gole, sentindo o líquido se assentar em meu estômago e distribuir fogo em todas as direções.○ Puta que pariu, tinha mulher por tudo quanto era canto e mais da metade parecia ser boa de cama, e não havia nada que se pudesse fazer – a não ser ficar olhando. Quem será que bolou um troço horrível desses? E no entanto não havia muita diferença entre uma e outra – descontando-se uma gordurinha aqui, uma falta de bunda lá – simplesmente uma porção de papoulas desabrochando no campo. Qual que se ia escolher? E por qual seria escolhido? Que importância tinha? Era tudo tão triste.□ Não amo as mulheres. O amor está para ser inventado, sabe-se. Elas só podem desejar uma situação segura. Ganha a situação, coração e beleza são postos de lado: não resta senão frio desdém, o alimento do casamento de hoje! Ou então vejo mulheres com sinais de felicidade, que eu podia tornar boas camaradas, já endurecidas por rústicos, sensíveis como açougueiros…⌂

Que consciência sádica, jocosa, tenho. Uma consciência insone, bêbada como um mar de ressaca gargalhando.∆ Minha razão condena em verdade tais recriminações e procura fortalecer-me contra os golpes da natureza, mas ela não pode impedir-me de os sentir. Iria de bom grado buscar no fim do mundo um bom ano de verdadeira tranquilidade e alegria, eu que só tenho como objetivo viver de bom humor. Sou muitas vezes de uma serenidade tristonha e estúpida, que me adormece e me dá dor de cabeça; não me basta. Se há por aí, em França ou alhures, alguém que aprecie a boa companhia, em viagem ou no lar, que se adapte ao meu humor e a quem eu me ajeite, que me comunique logo.◙

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◊ Mario VARGAS LLOSA. Travessuras da menina má. 2006. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Editora Objetiva/Alfaguara. Rio de Janeiro. 2006, pg.158.

○ Adriana LUNARDI. Vésperas. 2002. Editora Rocco. Rio de Janeiro. 2002, pg.94.

□ Charles BUKOWSKI. A mulher mais linda da cidade e outras histórias. 1967. Tradução de Albino Poli Jr. Editora L&PM. Rio Grande do Sul. 1997, pgs.81, 82.

⌂ Arthur RIMBAUD. Uma temporada no inferno. 1873. Tradução de Paulo Hecker Filho. Editora L&PM. Rio Grande do Sul. Edição bilíngue, 2006, pgs.52, 53.

∆ Diana DE HOLLANDA. Dois que não o amor. 2007. Editora 7Letras. Rio de Janeiro. Seção: dois que não, pg.19.

◙. Michel de MONTAIGNE. Ensaios. 1580. Tradução de Sérgio Milliet. Editora Abril. São Paulo. Coleção Os Pensadores, 2ª edição, 1980, pg.384, 385.