Estávamos apertados uns contra os outros perto da lareira quando, de repente, minha mãe se levantou, desequilibrando toda a turma; surpresos, nós a vimos dirigir-se para a porta e, movida por um obscuro impulso, escancará-la.1 Ela ficou ainda um tempo com um sorriso no rosto. Alçou os ombros ligeiramente. Foi à janela, o olhar cansado e vazio:
– Talvez eu deva ouvir música.2
Pôs as mãos para trás, ficou na ponta dos pés, como se quisesse enxergar algo, mas era só um gesto de irritação.3
– Agora o que é que eu vou fazer? – perguntou com a voz esganiçada.4
– É isso aí, mãe. Vai em frente e xinga! Nós não nos importamos!5
– Quando isso acontecer, Mis’Salim, vou saber que chegou a hora de6 sair de casa.7
Era uma maneira estranha de pensar. Mas ela era uma mulher estranha.8 Costumava dizer que uma mulher devia se sentir feliz no seio da sua família. Mas, como9 disse tio Ran10, o que uma mulher quer, para começar, é ter seu próprio círculo de relações, e11 mamãe não12 saía para ver ninguém.13 Passava a maior parte do tempo em seu quarto, com a porta trancada por dentro, mas de vez em quando emergia numa espécie de exaltação bêbada,14 voltava à costura de moldes baratos, à solidão de uma atividade cada vez mais anacrônica, sem perder o ânimo, nem o orgulho de quem passara a vida cortando e emendando tecidos. Dizia que muitas pessoas dançavam, marchavam, estudavam e se divertiam com roupas feitas por ela.15
1 Muriel BARBERY. A elegância do ouriço. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.307
2 Clarice LISPECTOR. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.92.
3 Milton HATOUM. Cinzas do norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.24.
4 J.K. ROWLING. Harry Potter e a pedra filosofal. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.137.
5 Bill WATERSON. Calvin e Haroldo – E foi assim que tudo começou. Tradução de Luciano Machado e Adriana Schwartz. São Paulo: Conrad, 2010, p, 49.
6 V.S. NAIPAUL. Uma curva no rio. Tradução de Carlos Graieb. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.10.
7 Arthur CONAN DOYLE. As aventuras de Sherlock Holmes. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, p.93.
8 V.S. NAIPAUL. Idem, p.10.
9 Arthur CONAN DOYLE. Idem, p.85.
10 Milton HATOUM. Idem, p.18.
11 Arthur CONAN DOYLE. Idem, p.85.
12 J.K. ROWLING. Idem, p.25.
13V.S. NAIPAUL. Idem, p.149.
14 Arthur CONAN DOYLE. Idem, p.149.
15 Milton HATOUM. Idem, p.223.
Imagem: “Hair window”, pintura de Michael Landau, ou Kreativmichael.