Archive for the ‘V.S. NAIPUL’ Category

MixLit 67: As agruras de mamãe

Estávamos apertados uns contra os outros perto da lareira quando, de repente, minha mãe se levantou, desequilibrando toda a turma; surpresos, nós a vimos dirigir-se para a porta e, movida por um obscuro impulso, escancará-la.1 Ela ficou ainda um tempo com um sorriso no rosto. Alçou os ombros ligeiramente. Foi à janela, o olhar cansado e vazio:

– Talvez eu deva ouvir música.2

Pôs as mãos para trás, ficou na ponta dos pés, como se quisesse enxergar algo, mas era só um gesto de irritação.3

– Agora o que é que eu vou fazer? – perguntou com a voz esganiçada.4

– É isso aí, mãe. Vai em frente e xinga! Nós não nos importamos!5

hair-window - Michael Landau - KreativMichael

– Quando isso acontecer, Mis’Salim, vou saber que chegou a hora de6 sair de casa.7

Era uma maneira estranha de pensar. Mas ela era uma mulher estranha.8 Costumava dizer que uma mulher devia se sentir feliz no seio da sua família. Mas, como9 disse tio Ran10, o que uma mulher quer, para começar, é ter seu próprio círculo de relações, e11 mamãe não12 saía para ver ninguém.13 Passava a maior parte do tempo em seu quarto, com a porta trancada por dentro, mas de vez em quando emergia numa espécie de exaltação bêbada,14 voltava à costura de moldes baratos, à solidão de uma atividade cada vez mais anacrônica, sem perder o ânimo, nem o orgulho de quem passara a vida cortando e emendando tecidos. Dizia que muitas pessoas dançavam, marchavam, estudavam e se divertiam com roupas feitas por ela.15

 


1 Muriel BARBERY. A elegância do ouriço. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.307

2 Clarice LISPECTOR. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.92.

3 Milton HATOUM.  Cinzas do norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.24.

4 J.K. ROWLING. Harry Potter e a pedra filosofal. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.137.

5 Bill WATERSON. Calvin e Haroldo – E foi assim que tudo começou. Tradução de Luciano Machado e Adriana Schwartz. São Paulo: Conrad, 2010, p, 49.

6 V.S. NAIPAUL. Uma curva no rio. Tradução de Carlos Graieb. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.10.

7 Arthur CONAN DOYLE. As aventuras de Sherlock Holmes. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, p.93.

8 V.S. NAIPAUL. Idem, p.10.

9 Arthur CONAN DOYLE. Idem, p.85.

10 Milton HATOUM.  Idem, p.18.

11 Arthur CONAN DOYLE. Idem, p.85.

12 J.K. ROWLING. Idem, p.25.

13V.S. NAIPAUL. Idem, p.149.

14 Arthur CONAN DOYLE. Idem, p.149.

15 Milton HATOUM. Idem, p.223.

Imagem: “Hair window”, pintura de Michael Landau, ou Kreativmichael.

Mixlit 7: Corte no mundo

Tudo na cidade continuava como antes – o exército no quartel, as fotografias do presidente por todo lado, o vapor realizando suas viagens regulares vindo da capital. Mas os homens haviam perdido ou rejeitado a idéia de uma autoridade vigilante(1). O pelotão que saía à noite para proteger o quartel, alapado nas matas rasas que cresciam, amarelentas, na areia, torcidas de anemia, aproximava-se no escuro, passava sob a lâmpada coberta de um abajur de insectos, dispersava-se sem ruído nas cabanas das casernas, onde a profundidade do sono se media pela intensidade do cheiro dos corpos, amontoados ao acaso como nas fossas de Auschwitz, e eu perguntava ao capitão O que fizeram do meu povo(2).

Desci a viela bêbado a ponto de precisar me apoiar na parede das casas, a maioria pintada de branco, uma afronta ao pó avermelhado daquele lugar(3). Nossas janelas estavam escuras. A entrada estava vazia. Entrei caminhando junto à parede da esquerda, mas não havia ninguém: só a escada subindo em curva na sombra ecos de passos de gerações tristes como poeira leve sobre as sombras, meus passos a despertá-las como pó, que depois descia, leve, outra vez. Vi a carta antes mesmo de acender a luz, em pé, apoiada num livro sobre a mesa, para que eu a visse:(4)

“Se a voz de uma mulher que conta histórias tem o poder de trazer crianças ao mundo, é também verdade que uma criança tem o poder de dar vida a histórias. Dizem que um homem ficaria louco se não pudesse sonhar à noite. Do mesmo modo, se não é permitido a uma criança entrar no…”(5)

Ouviu?, é tiro, vamos lá!(6)

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1. V.S. NAIPUL. Uma curva no rio. 1979. Tradução de Carlos Graieb. Companhia das Letras. São Paulo. 2004, pg.239.

2. Antonio LOBO ANTUNES. Os cus de Judas.  1979. Alfaguara – Objetiva. Rio de Janeiro. 2007, 2ª edição, pg.54.

3. Marçal AQUINO. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. 2005. Companhia das Letras. São Paulo. 2009, 4ª reimpressão, pg.78.

4. William FAULKNER. O som e a fúria. 1929. Tradução de Paulo Henriques Britto. Cosac & Naify. São Paulo.2003, pg.166.

5. Paul AUSTER. A invenção da solidão. 1982. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras. São Paulo. 1999, pg.172.

6. Luiz RUFFATO. Eles eram muitos cavalos. 2001. Boitempo editorial. São Paulo. 2002, 2ª edição, pg 143.